Logo UFPR

UNIVERSIDADE
FEDERAL DO PARANÁ

Refugiados sírios trocam os conflitos de um país em guerra por oportunidades no Brasil

Fugindo da guerra na Síria, a família Kanjo veio para o Brasil e encontrou refúgio, inserção profissional e formação superior em universidade pública

Quando ganhou uma bolsa para realizar trainee por alguns meses em uma grande empresa de Dubai, o sírio Ayham Kanjo não imaginava que passaria cinco anos sem ver sua família. No entanto, a guerra civil que começou em seu país de origem o impediu de retornar para casa. Filho de pai muçulmano, mãe cristã e namorado de uma brasileira protestante, o refugiado, de 29 anos, agora está estabelecido no Brasil, trocou o marketing digital pela gastronomia síria, mas ainda sonha em voltar para a sua área profissional e, por isso, agarrou a oportunidade de cursar Administração na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Ayham saiu de Aleppo, na Síria, dois meses antes de a guerra civil estourar. O que era pra ser uma experiência profissional, tornou-se uma saída para escapar do conflito. Com grande parte da família em meio à guerra, ele não podia mais retornar para casa, pois se o fizesse, seria obrigado a ingressar no serviço militar. Pelos três anos seguintes ele morou em Dubai e no Egito, seguindo para o Brasil com a promessa feita pelo consulado de que reencontraria seu pai e seu irmão.

O sírio lembra que o país do futebol não era a sua primeira opção, porque até decidir realmente se mudar para cá, o talento com a bola nos pés dos brasileiros era tudo o que ele sabia sobre o local. Irlanda e Estados Unidos, suas primeiras alternativas, não deram certo. A primeira porque, na condição de refugiado, ele receberia um salário do governo e seria impedido de estudar ou trabalhar por, pelo menos, quatro anos. Já a embaixada americana o recusou de imediato, devido à sua nacionalidade. Como no Egito ele não podia ficar porque a região também estava passando por conflitos políticos, Ayham escolheu o Brasil como sua próxima casa.

Ayham Kanjo cursa Administração na UFPR. Foto: André Filgueira

Esperançoso, enviou seus documentos a quase todas as universidades brasileiras e, aprovado na Universidade de São Paulo (USP), sua primeira dificuldade ao chegar na cidade foi se virar sem falar português. Sem rumo, recorreu à internet para se localizar e encontrar um lugar para passar os próximos dias. Foi assim que acabou se hospedando em um motel no centro da capital paulista. “Para mim, motel era a mesma coisa que hostel. O lugar era antigo, sujo e os quartos eram quase abertos. A primeira noite não consegui dormir por conta do barulho. Passei o tempo todo sentado, orando. Durante os nove dias seguintes foi o mesmo sofrimento”, conta.

Buscando maneiras de se sentir mais próximo de casa, Ayham passou a frequentar uma mesquita. Lá ele encontrou um árabe que o ajudou a alugar uma casa. Já instalado nos novos aposentos, começou a trabalhar com seu notebook sentado na calçada, na rua. “Não havia nenhum lugar por perto que eu pudesse ficar, o estabelecimento mais próximo ficava a cerca de 30 quilômetros. Certo dia encontrei sinal de wi-fi e, a partir daquele momento, comecei a trabalhar dali”.

Foi naquela situação que o sírio conheceu a solidariedade do povo brasileiro. Um senhor que dia após dia passava cumprimentando-o, certa vez, após uma conversa truncada via tradução por aplicativo, resolveu oferecer pouso a ele em sua própria casa. Lá ele ficou até que sua família chegasse ao país.  “A família dele me ajudou, deu dicas. Eu o via como um pai”.

Enquanto Ayham sofria para se adaptar ao Brasil, seu irmão mais novo, Tarek, assistia a situação na Síria ficar cada vez mais complicada. Com 18 anos, na época, havia recém ingressado na universidade e sabia que precisava se graduar para ter melhores oportunidades em outros países. Mesmo relutando em partir naquele momento, suas perspectivas mudaram após a queda de uma bomba em sua universidade acabar com o sonho de muitos dos seus colegas.

“Mesmo relutando em partir naquele momento, suas perspectivas mudaram após a queda de uma bomba em sua universidade acabar com o sonho de muitos dos seus colegas.”

 

“Eu havia terminado uma prova e estava chegando em casa quando comecei a receber muitas ligações. Todo mundo estava preocupado, especialmente minha mãe. Só então eu fui saber o que tinha acabado de acontecer”, relata o estudante. Vários de seus amigos morreram ou sofreram ferimentos naquele incidente. “Normalmente eu saía da aula e ficava conversando com os colegas por algum tempo, mas naquele dia estava com pressa”. Com o psicológico extremamente abalado, Tarek ficou duas semanas sem pisar novamente na universidade, até conseguir voltar para realizar as últimas provas. Foi pela insistência da mãe que e o rapaz tomou a decisão de se juntar ao seu irmão.

Tarek Kanjo decidiu encontrar o irmão no Brasil após uma bomba cair na universidade que frequentava em Aleppo. Foto: André Filgueira

O pai, Ibraim, veio junto para ajudá-lo a se desvencilhar do serviço militar. Na Síria, enquanto os jovens estão cursando graduação, existe um documento que adia essa obrigação, mas com a ocorrência de guerra, isso não tem mais validade. “Como os aeroportos estavam fechados no país, seguimos para o Líbano por terra. Ao longo do caminho, por diversas vezes, quiseram me recrutar para as forças armadas e meu pai teve que pagar um valor absurdo para me deixarem ir. Ele deu praticamente todo o dinheiro que estávamos trazendo”, relembra.

A vida da família em São Paulo não estava sendo das mais fáceis. O deslocamento complicado e demorado, assim como a necessidade de trabalhar obrigaram Ayham a desistir da vaga na USP, a qual estava condicionada a um cursinho pré-vestibular e ao próprio vestibular. Os irmãos passaram a estudar português via internet e aplicativos, ao mesmo tempo que tentavam trabalhar para garantir as necessidades básicas. O pai arrumou emprego como marceneiro, profissão que exercia na Síria, mas como não falava a língua local, não ganhava bem. O salário dos meninos, que trabalhavam para empresas do exterior, era em grande parte destinado a taxas, impostos e a conversão também não favorecia.

Com as perspectivas abaladas e uma situação longe de ser confortável, a ligação da UFPR avisando sobre vagas abertas renovou as esperanças dos irmãos, que em seguida viajaram para Curitiba para realizar provas e complementar a documentação. Naquele momento, apenas Ayham conseguiu a vaga, em Administração, e seu pai não queria que ele se mudasse pois a família que tinha acabado de se reunir ficaria separada novamente. “Eu achei que Curitiba era muito parecida com a nossa cidade. Depois meu pai conheceu e também gostou”, conta o irmão mais velho. Assim, os três decidiram se mudar para a capital paranaense.

A chegada à Curitiba marcou o início de uma nova fase no Brasil, principalmente quando os três ganharam cursos de língua portuguesa no Centro de Línguas e Interculturalidade (Celin) da UFPR. As aulas foram importantes não só porque ajudaram na integração à comunidade e à cultura do país, mas também porque foram o ponto de partida para a criação do restaurante que hoje é a fonte de sustento da família.

“Ao final do semestre, meu pai fez esfihas para os professores como forma de agradecimento”, explica Ayham. O aroma convidativo vindo da caixa de isopor que transportava os salgados aguçou a curiosidade de muitas pessoas no caminho e até mesmo de vizinhos. Ali surgia uma oportunidade de trabalho para seu Ibraim que, necessitando se sentir produtivo, não queria ficar parado. “No início recebíamos encomendas e vendíamos pelo centro de Curitiba, após as aulas no Celin”.

Da esquerda para a direita: o filho mais novo, Tarek Kanjo; o pai, Ibraim Kanjo; e o filho mais velho, Ayham Kanjo. Foto: Arquivo Pessoal

O preparo tradicional tornou a esfiha de massa fina e com bastante recheio do patriarca sírio muito requisitada e eles tiveram que alugar uma cozinha para dar conta dos pedidos. Ayham também optou por parar de trabalhar com marketing digital para a empresa estrangeira e se dedicar aos negócios da família. “Abrimos o restaurante e ele não parou de crescer. Começamos com um tipo de esfiha e, atualmente, servimos sete diferentes sabores e mais de 42 pratos diferentes”.

“Abrimos o restaurante e ele não parou de crescer. Começamos com um tipo de esfiha e, atualmente, servimos sete diferentes sabores e mais de 42 pratos diferentes”.

 

Os três fazem de tudo um pouco no restaurante, mas o pai é o especialista na cozinha. Apesar de ter feito o curso de português, muito ligado às tradições, ele ainda tem dificuldades com o idioma o que não o impede de ser simpático e atender muito bem seus clientes, que saem do estabelecimento falando um pouquinho de árabe também.

Atualmente Tarek voltou a cursar Odontologia, agora na UFPR. Foto: André Filgueira

Com tudo conspirando a favor da família, o tão sonhado curso de Odontologia bateu à porta de Tarek novamente. Ele que, mesmo a contragosto do pai, passou um ano no Rio Grande do Sul estudando na Universidade Federal de Santa Maria, recebeu com extrema alegria a notícia que havia dado certo a transferência de curso para Curitiba. Desde o início deste ano ele estuda na UFPR. “Cursar Odontologia é algo que gosto de coração. Sinto-me feliz ao entrar na clínica para fazer os procedimentos e por entender a matéria. Quando você está estudando, você fica mais motivado para ter outros sonhos”, avalia.

Curitiba também proporcionou outra situação inusitada para a família Kanjo: o relacionamento entre um muçulmano e uma descendente alemã de tradição protestante. Foi por meio das redes sociais que Ayham conheceu sua namorada. Mônica é curitibana; sua família tem ascendência alemã e tradição protestante. “No início, foi difícil para nossas famílias aceitarem o relacionamento”, relembra o sírio.

Ayham sonha em voltar a trabalhar na área de marketing digital. Foto: André Filgueira

“No início, foi difícil para nossas famílias aceitarem o relacionamento.”

 

O sogro também preferia alguém da comunidade dele. “Ele falava que queria ver a filha com um rapaz que falasse alemão. Hoje em dia eu brinco, digo que falo árabe e fica tudo bem. Apesar da diferença de religião, nossas famílias se respeitam”. Os dois estão juntos há dois anos. O respeito e a aceitação também são fundamentais no restaurante, que atualmente recebe muitos clientes  de outras religiões.

Os donos do restaurante árabe Yalla Comer também realizam eventos e atendem encomendas. Foto: Arquivo Pessoal

O principal sonho da família é conseguir reunir os integrantes que ainda estão em outros países. A irmã dos meninos mora na Turquia e, com o acirramento dos conflitos por lá, a ideia é trazê-la o quanto antes. Já a mãe ainda está em Aleppo, mas também sonha em se reunir com o restante dos parentes.

Além da reunião familiar, os irmãos também querem ter sucesso profissional em suas áreas. O mais velho pretende voltar para a área de marketing digital e Tarek planeja abrir um consultório odontológico. “Quero ajudar muitas pessoas sorrirem. O restaurante também é importante, é o negócio da família. Nosso objetivo é continuar crescendo e abrir filiais em outras cidades do Brasil”, diz.

Veja mais fotos.

* Matéria atualizada em 20/06/2023

Sugestões

Filho de Gari e auxiliar de serviços gerais é aprovado em Medicina na UFPR
Filho de um gari e uma auxiliar de serviços gerais, Felipe Nunes é aluno do 3º ano do curso de Medicina...
UFPR alerta para golpe de perfil fake no Instagram
A Universidade Federal do Paraná (UFPR) informa que um perfil falso está se passando pela conta oficial...
UFPR lamenta o falecimento do servidor Augustinho Gilberto Bolina
A Universidade Federal do Paraná (UFPR) comunica, com profundo pesar, o falecimento do servidor Augustinho...
UFPR realiza Primeiro Simpósio Internacional de Transplantes
Na última sexta-feira (12),  aconteceu o Seminário Internacional de Transplantes, no auditório do...