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Referências da intelectualidade brasileira explicam poucos negros em filmes e novelas, afirma Joel Zito de Araújo

O ponto de vista dos autores que mais se destacaram ao tentar explicar a sociedade brasileira é de quem vê as coisas pelo alto, como elite; daí a posição usual do negro como o “outro” na produção cultural do país. Essa é a explicação do cineasta mineiro Joel Zito de Araújo para a principal discussão levantada na conferência de abertura do seminário Discurso e Relações Étnico-Raciais, realizada nesta segunda-feira (11) na Sala Homero de Barros, no Campus Reitoria. O seminário integra o Ciclo de Palestras Africanidades e Educação e tem como objetivo debater a presença dos negros na produção cultural brasileira (veja aqui a programação).

Para Joel Zito, a produção cultural brasileira tem como padrão a condição coadjuvante do negro devido a diversos fatores. Entre eles, o cineasta destaca os ensinamentos de teóricos importantes da sociedade brasileira, como Darcy Ribeiro, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Florestan Fernandes, que são também grandes influenciadores das academias em que produtores culturais se formam até hoje.

Joel Zito: “nossa produção audiovisual tem dificuldade de dar vazão ao protagonismo negro”. Fotos: Samira Chami Neves / Sucom UFPR

Em diferentes graus, Joel Zito avalia que esses autores contribuíram para a ideia de que a cultura brasileira, por ser miscigenada, poderia prescindir de destacar a contribuição cultural dos negros e mesmo sua representação.

“Esses autores que fizeram nossa cabeça sobre o Brasil tiveram em comum a compreensão de que os quatro séculos de escravidão se extinguiram como num passe de mágica depois da Lei Áurea”, diz. “É como se a sociedade brasileira tivesse dado um salto e virado a página, como se a escravidão tivesse deixado de fazer parte da estruturação da nossa sociedade”. Para o cineasta, disso decorre o fato de que as produções audiovisuais brasileiras “negam nossa diversidade racial e negam a maioria dos brasileiros”. “Às vezes ficamos impressionados com as exceções, como as conquistas do [ator] Lázaro Ramos, mas não podemos esquecer que isso é absolutamente minoritário na produção televisiva”.

O cineasta analisa que essa interpretação se mantém viva após a disseminação de conceitos como o “lusotropicalismo”, criado por Freyre nos anos 1930 para defender a adaptação dos colonizadores portugueses às colônias tropicais. Joel Zito percebe que mesmo o sociólogo Fernandes, que cuidou de abordar a perpetuação do racismo na sociedade brasileira, não deixou de responsabilizar totalmente essa população por sua posição subalterna em “A integração do negro na sociedade de classes”, de 1964.

Contrasenso estatístico

Joel Zito destaca que essa influência é boa parte da explicação de por que TV, cinema, publicidade e patrocinadores culturais adotaram como normal “uma imagem tão colonizada e tão embranquecida da nossa sociedade” e parecem tão indispostos a discuti-la. “Nossa produção audiovisual tem dificuldade de dar vazão ao protagonismo negro”, afirma.

O cineasta contrapôs dados como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2014, do IBGE, que aponta que quase 54% dos brasileiros se dizem pardos ou negros, e a pesquisa “A Cara do Cinema Nacional”, do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Segundo esse levantamento, 80% dos atores do cinema comercial brasileiro são brancos. Por trás das câmeras, a disparidade continua: 80% dos cineastas brasileiros são homens brancos, 14% são mulheres brancas, 2% são homens negros e inexistia cineastas negras em atuação entre 2002 e 2012, período que o estudo abrangeu.

“É um quadro daquilo que podemos perceber como um segmento da sociedade brasileira que possui uma desigualdade racial profunda”, descreve Joel Zito. Autor do documentário “A Negação do Brasil” (2000), que trata da sub-representação dos negros nas telenovelas, o cineasta compreende que o quadro passou por poucas mudanças, mesmo quase 20 anos depois. “Isso permanece porque ações afirmativas não conseguiram adentrar o campo do audiovisual. Todas as tentativas foram obstaculizadas pelo Congresso Nacional. Nunca passa”.

Cinema negro

Joel Zito é curador do “Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul”, que ocorre anualmente desde 2007 no Rio. A edição deste ano, ocorrida entre agosto e setembro, teve recorde de inscrições: 110 filmes, dos quais 66 foram selecionados, entre eles produções que vêm se destacando em festivais, como o curta “Deus”, de Vinícius Silva. Na edição anterior, foram 58 filmes, com 35 selecionados.

Cena do curta “Deus”, de Vinícius Silva. Imagem: Reprodução

“A gente hoje finalmente tem um cinema negro”, comemora Joel Zito. Ele especifica o termo “cinema negro” não como uma escola estética, mas por seu conteúdo. “Todos que fazem cinema têm influências cruzadas. Por isso não acredito que exista uma ‘estética negra’. Pode existir até uma forma de narrativa mais dominante, mas não influi tanto”, conta. “O que caracteriza o cinema negro é o desejo de contar histórias que revelam a existência de uma população negra que é majoritária no Brasil. Isso é uma revolução”.

Joel Zito adianta que o cinema negro não tem características excludentes nesse intento, como o senso comum às vezes se preocupa em apontar. “Não significa criar um mundo isolado, porque não estamos isolados, somos miscigenados”, diz. “Mas significa contar nossas angústias, tristezas, vivências”. Ou seja, fugir do usual posicionamento do negro como “outro”: a mulata que inicia o jovem branco sexualmente, o amigo de infância negro dele, a mucama que o criou, entre vários outros estereótipos.

Programação

A participação do cineasta no seminário inclui ministrar mini-cursos sobre cinema negro, que foram bastante procurados. O da tarde desta terça contou com cerca de 80 participantes.

A programação do Seminário Discurso e Relações Étnico-Raciais vai até esta quarta-feira (13).