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Mulheres da UFPR: Dora Lucia Bertulio e o protagonismo na luta anti-racista

 

A história de uma das mais destacadas militantes contra o racismo no Brasil tem uma ligação profunda com a Universidade Federal do Paraná (UFPR). Procuradora da instituição, Dora Lucia Bertulio é egressa do curso de direito da UFPR e foi uma das protagonistas da implementação das cotas raciais e sociais na universidade, tendo um papel destacado na aceitação desta política por outras instituições no Brasil. Em 2017 foi homenageada como personalidade Afro-Paranaense pelo Governo do Estado do Paraná.

A procuradora, natural da cidade de Itajaí em Santa Catarina, conta que desde menina a discriminação racial esteve presente na sua vida. Lembra que no colégio em que estudava em todo o corpo discente, apenas três estudantes eram negros. Explica que no combate às diversas situações de preconceito foi essencial a orientação que recebeu na casa dos pais.

“Eu fui muito bem educada pelo meu pai e também pela minha mãe com relação a nossa negritude e sobre o confronto com aquele mundo branco hostil. Sempre explicaram muito bem, foram muito didáticos na questão de que a gente não era responsável pelo racismo, que o racismo é algo que vem do outro, portanto você não tem que se sentir humilhada, não tem que se sentir menor, não tem que se sentir inferior porque não é você que tem um problema é o outro quem tem” conta Dora.

Sua história familiar foi marcada pela instauração da ditadura militar. Seu pai, operário da construção civil, era sindicalista e membro do Partido Comunista na época, e é preso logo na sequência do golpe de 1964. Além da preocupação e do afastamento, Dora conta que a sua família passou por diversas dificuldades financeiras devido a prisão arbitrária.

Depois da libertação, a família muda-se para Curitiba. No ano de 1968, auge do regime militar, Dora entra para o curso de direito da UFPR e tem uma intensa atividade no movimento estudantil, chegando a fazer parte da diretoria do Centro Acadêmico Hugo Simas. Convivendo com o medo, devido à possibilidade constante de seu pai ser preso pelo regime novamente, além da situaçaõ de seu irmão, que também foi alvo da ditadura.

“Passei por aqueles perigos que os alunos tiveram na época, a tomada de reitoria e aquela coisa toda. Sempre um pouco assustada, porque meu pai estava com um processo de prisão e meu irmão que era também estudante universitário em Florianópolis foi preso naquele período e ficou muito tempo, foi torturado essa coisa toda” relembra.

Conferência de Durban

Depois deste período mais agitado, a procuradora conta que diminuiu a atuação militante, dedicando um tempo maior para a família e a criação dos filhos. Depois de formada se muda para Cuiabá, trabalhando como assistente jurídica da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) mas não demoraria a voltar para a militância. “A partir daí começa a minha vida mas pública com o trabalho com as questões das relações raciais e da violência contra mulher” diz .

Uma das atuações marcantes da sua carreira como advogada, foi nos grupos chamados de SOS racismo. “Nós tínhamos uma organização lá em Florianópolis, foi no período que estava fazendo mestrado e doutorado [na Universidade Federal de Santa Catarina], em que nós abrimos espaço de SOS racismo, que significa se você sofreu racismo denuncie e a gente ia com grupo de advogados para entrar com uma ação” conta.

Explica que devido às dificuldades e à pouca sensibilidade da justiça à temática perderam praticamente todas as causas, mas que foi um movimento importante para articular ativistas e dar maior corpo à causa. “Quando você luta com um grupo de excluídos para tentar a inclusão você ajuda muitos outros, então eu acho que a gente conseguiu avançar bastante, até mesmo em termos de academia, hoje se você abrir o site do CNPQ ou da Finep você vai ver um número bastante interessante de trabalho sobre relações raciais no Brasil, não é grande mas é interessante”.

Dora explica que nesta época era muito difícil trabalhar com estes temas no meio acadêmico e que a maneira que encontrou foi tratar de um assunto mais amplo. “Na universidade você de alguma forma tinha que trabalhar com esse tema camuflado, assim começa meu trabalho com direitos humanos. Quando começamos a discutir direitos humanos começamos a ter público para escutar e aí você entra com o tema do racismo e da discriminação racial”.

Conta que estes debates começaram a tomar volume por volta de 1996, mas é a partir dos anos 2000 que a sociedade vai dar uma maior abertura à temática especialmente devido à Conferência de Durban, em 2001. “Esta questão ganha maior atenção depois da conferência, o Brasil foi um dos protagonistas, porque, claro, você tem uma sociedade que é 50% negra mas que, dentro dela, nenhum negro tem poder, para a ONU e para todos os países era uma coisa estranhíssima” relembra.

A partir da metade da década de 90, o movimento negro passa a buscar um novo paradigma. Dora conta que a atuação em torno da denúncia do racismo não estava surtindo efeito porque ela não atingia quem não era negro, não tinha um efeito estrutural. “A denúncia não faz mal para os brancos, ela só faz mal para os negros, porque se eu digo que eu sofro racismo você diz ‘que pena’. Eu posso denunciar, você pode dizer que eu estou mentindo ou você pode dizer apenas ‘coitada’, mas não te toca. Eventualmente você tem as pessoas mais solidárias, mas não é um problema para a sociedade brasileira branca.” explica a professora.

Foi assim que se buscaram novos paradigmas de luta. “Se a gente quisesse modificar um pouco a sociedade brasileira racista teríamos que entrar em parâmetros diferenciados, não somente a denúncia, assim passamos a fazer muitos estudos sobre a questão americana” diz..

A procuradora aponta as similaridades em relação a questão dos países do continente americano: “todos foram alvos da escravidão, todos foram colonizados por europeus, todos têm sua população negra coma a mais pobre e a menos bem tratada. A mais discriminada, a de menor poder aquisitivo e sem poder político nenhum”. É a partir deste ponto que as ações afirmativas entram como a principal bandeira do movimento.

Cotas raciais e o protagonismo da UFPR

Dora Lucia Bertulio (foto: Samira Chami Neves, arte: Pedro Curcel)

Apesar das similaridades citadas, era preciso considerar os diferentes contextos dos Estados Unidos e Brasil. “Quando a gente pensou em ação afirmativa gente não pensou em pontuação ou dar uma chance a mais mas pensou em fazer algo mais drástico, o que foram as cotas raciais” conta a procuradora que assumiria um papel de protagonismo na luta pela instauração das cotas no Paraná e no Brasil.

“Em 2002 eu assumi a chefia da Procuradoria da UFPR, o que me deu bastante abertura junto ao professor [Carlos] Moreira [Junior], que era reitor na época a quem eu tenho muito respeito, porque ele foi extremamente sensível a esta questão.” conta Dora, que explica a importância dos gestores públicos neste processo. “Por mais que você lute internamente, se você não tiver a receptividade da direção, você continua brigando, mas não consegue grande coisa e isso a gente conseguiu absoluta receptividade da Reitoria da UFPR da época”.

O movimento

A professora conta que a partir de então começou uma articulação para levantar esta bandeira na instituição. “O movimento negro veio para a UFPR, organizou seminários, fizemos discussões, enfrentamos as resistências que existiam nos campus, nos professores tudo para buscar essa aprovação” relata.

Conta que foram muitas as reuniões no Conselho Universitário (Coun) até conseguir fechar uma proposta que fosse aprovada. A proposta, inclusive, recebeu algumas resistências inauditas, como a votação contrária em Assembleia Geral dos estudantes da instituição. Mas finalmente a Resolução número 37 de 2004 é aprovada pela maioria dos conselheiros, colocando a UFPR entre as primeiras universidades do Brasil a reservar cotas raciais e sociais, seguindo o protagonismo da Universidade de Brasília (UnB), que havia aderido à proposta alguns meses antes.

“Foi uma revolução no Paraná e muito especialmente em Curitiba, porque, como que uma cidade como Curitiba, chamada aquela da imigração, em que todas as etnias têm seus espaços, menos a população negra, de repente tem cotas raciais? Então acho que foi um dos trabalhos que teve maior reflexo, não só aqui, como também nacionalmente, porque a partir daí junto com a Universidade de Brasília, nós passamos a fazer um trabalho nacional por mais adesões” aponta Dora.

A partir de então o movimento ganhou o Brasil, Dora participaria nos próximos anos de várias conferências na busca de sensibilizar as universidades, a exemplo do que havia ocorrido em Curitiba e Brasília. Os encontros passaram por 23 estados, o resultado do movimento foram diversas adesões ao sistema de cotas.

Apesar destes avanços, Dora explica que há ainda muito a avançar. “Hoje nós vemos a gurizada no pátio da reitoria, é bonito ver como eles têm orgulho de sua negritude, fazem questão de mostrar os cabelos, de marcar sua presença” comemora a procuradora, mas aponta que em termos gerais da sociedade brasileira se avançou muito pouco, ainda há grandes desafios na busca de derrotar o racismo.

Aponta a questão da violência, por exemplo, que atinge principalmente os jovens negros nas periferias, números absurdos, facilmente comparáveis às políticas de extermínio em situações de guerra. A questão da desigualdade e da pobreza também salta aos olhos.

Um dos desafios que cita é o de aumentar a representatividade no meio acadêmico. “Pensando aqui na nossa universidade, por exemplo, a questão acadêmica continua séria, não se investe para trazer indivíduos negros que venham para palestrar em eventos, não estou falando para tratar de relações raciais, pode ser sobre qualquer assunto (…) nos Estados Unidos você sabe que você tem um número bastante grande de negros em todos os espaços e universidades, e você traz três, quatro brancos para cá, a mensagem que passa é clara: os negros não são tão capazes. Aí você vai fazer um seminário sobre a história da África, você traz um francês, um holandês um inglês, e cadê os africanos?” conclui.

Dora frisa a questão indicando que na maioria dos países, mesmo da Europa com uma população negra muito menor que o Brasil é muito comum termos pesquisadores negros enquanto em nosso país é muito escasso o número.

Por Rodrigo Choinski

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