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FEDERAL DO PARANÁ

Conheça a história de Russel, estudante haitiano que cursa Administração na UFPR

Rede de organizações da sociedade civil brasileira instituiu a Semana do Migrante, celebrada de 14 a 21 de junho em 2020

Estudioso, interessado em tudo que envolve sua terra, engajado em causas que tocam seu coração. O haitiano Russel Cerilia, aluno do quarto período do curso de Administração da UFPR, gosta de fazer reflexões sobre a vida e as relações humanas. Carrega princípios que aprendeu com o pai, Max, líder religioso em Petit-Goâve, sua cidade natal, e que o auxiliaram em momentos de dificuldade no Brasil. Há quase sete anos, mora em Curitiba e não vê a família. 

A saudade, que tinha previsão para terminar em 2020, permanecerá até janeiro de 2021, se o melhor cenário se concretizar e a pandemia perder força. “Não consigo segurar mais. Quero ver meu pai. Quero conversar com ele. A gente tem muita coisa para falar. É o melhor amigo que eu tenho. Ele passou alguns valores que, até hoje, me ajudam para ter equilíbrio”, afirma o estudante, que iniciou a jornada acadêmica na Federal do Paraná em 2019. Enquanto aguardava o início da entrevista presencial, feita antes da pandemia, pesquisava preços de passagens.

O jovem de 35 anos nasceu em maio de 1985 em Ouest, um dos dez departamentos do Haiti. É formado em Economia, recorda com facilidade datas de fatos históricos e, com frequência, parafraseia autores africanos. Questionado sobre seu nome, sinaliza o amor por aquilo que é cultural e que remete à sua origem. “Não gosto porque parece um nome de pessoa da América do Norte. Eu sou da África. Qualquer tipo de identidade que a gente tem, eu aprecio; sou negro. Gosto mais de nomes de lá”, pontua, em meio a reflexões sobre o escravismo na América.

No Brasil, experienciou dores que nunca imaginou sentir, e também viveu uma de suas maiores alegrias: ser pai de Russewelt, que completará quatro anos em setembro. “Ter um filho é um projeto de Deus. Tinha 31 anos na época. A mãe dele é uma haitiana da mesma cidade que eu, mas não conheci ela lá. Nós nos encontramos aqui, deu certo e criamos um filho”, conta o futuro administrador.

Russel, a companheira Rosalie St-Jacques e o filho Russewelt, em 2018, no Zoológico Municipal de Curitiba, no Alto Boqueirão. Foto: Arquivo pessoal

 Leitor voraz e conhecedor das lutas e conquistas de seu povo, Russel é um dos 29 alunos selecionados em janeiro do ano passado pelo edital de reingresso da UFPR – por meio do qual migrantes com visto humanitário e refugiados que já iniciaram curso superior nos países de origem têm acesso a vagas remanescentes de graduação. A ação é realizada desde 2014, amparada pela Resolução 13/2014 do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe).

A Federal conta também com vestibular específico para migrantes e refugiados, com vagas suplementares. A iniciativa integra as políticas de inclusão e acesso à Universidade por grupos sociais vulneráveis e é regida pela Resolução 63/2018 do Cepe. Em 2019, a instituição recebeu dez novos estudantes por meio do primeiro processo seletivo especial para migrantes e refugiados

No dia 27 de janeiro de 2020, 28 refugiados e migrantes com visto humanitário – selecionados pelo edital de reingresso e pelo processo seletivo especial – iniciaram o ano letivo com o curso Acolhimento Linguístico e Acadêmico.

Carinho pela UFPR

O economista aprendeu a língua falada no Brasil por meio do projeto de extensão Português Brasileiro para Migração Humanitária (PBMIH), ação do Programa Política Migratória e Universidade Brasileira (Pmub) da UFPR, criado em 2013.

A Biblioteca do Campus Jardim Botânico e a Biblioteca do Edifício Dom Pedro I da Reitoria são seus lugares preferidos na Universidade. “Um compromisso que eu sempre tenho com um monte de autores de séculos XVIII é a biblioteca. Cada vez que eu vou lá, é Jacques Rousseau que está me chamando no corredor, e outros. É o melhor lugar que tem”.

Russel, em registro feito na Biblioteca do Campus Jardim Botânico da UFPR. Foto: Marcos Solivan/Sucom-UFPR

Russel cresceu em meio a livros, com o pai diretor de escola pública e a mãe professora. “É minha cultura estudar e, com certeza, vou estudar até o doutorado. Não estou fazendo pós-graduação no Brasil porque não consegui revalidar meu diploma de Economia. Fiz a prova uma vez e tirei nota vermelha. Vou continuar estudando porque, pra mim, é a melhor forma para achar liberdade. Se não há liberdade, não há nada”.

Durante o curso de acolhimento a estudantes migrantes e refugiados do qual participou, colegas haitianos veteranos disseram que ele e outros conterrâneos reprovariam nas disciplinas. A postura adotada diante do que ouviu na primeira semana na Universidade revela determinação. “Pensei ‘que louco’. Por que essa atitude pessimista? Pra mim, ser estudante da UFPR é perguntar: qual meio vou utilizar para passar nas minhas disciplinas? É isso que me interessa. A gente está aqui, é nosso compromisso, é nossa responsabilidade. Tem que passar”. A reflexão sobre o assunto rondou seus pensamentos durante todo o semestre.

O haitiano chegou ao Brasil em 2013 e ingressou na Federal do Paraná em 2019. Foto: Marcos Solivan/Sucom-UFPR

Autonomia e meios para estudar foi o que encontrou na Federal do Paraná. “Você quer resolver o problema das pessoas pobres? Dá meio para elas. Para mim, é a melhor forma para ajudar. A UFPR me mostra, dentro de Curitiba, que é uma resistência, um lugar que pensa diferente. Está dando oportunidade para pessoas que vêm para o Brasil, que são julgadas pela cor e pela origem. A integração real é feita pela educação”, defende.

A UFPR oferece a estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica auxílios para permanência, refeição, que prevê gratuidade nos restaurantes universitários, moradia e, ainda, auxílio creche para estudantes mães. Os benefícios são oferecidos por meio do Programa Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes), na Universidade chamado Programa de Benefícios Econômicos para Manutenção (Probem).

Bons amigos

A relação com um amigo brasileiro serena o tom da voz. O estudante conheceu o doutorando em Sociologia pela UFPR Pedro Francisco Marchioro no dia 20 de junho de 2018. Em uma cerimônia de comemoração ao Dia Mundial do Refugiado e à Semana do Migrante. O evento ocorreu no Guairinha, auditório do Teatro Guaíra, localizado no Centro da capital paranaense. “Fiz uma intervenção sobre a geopolítica. Ele se aproximou e a gente conversa há um tempão, trocamos telefones com o objetivo de bater papo sobre as atualidades da política internacional e do sistema capitalista”, detalha o haitiano.

“Um evento com personalidades, vinho, um grande coquetel, o que surpreendeu um pouco a todos, já que a experiência do refugiado/migrante é praticamente contrária a isso. Lá pelas tantas, eis que se ergue uma voz na plateia contestando aquilo tudo. Essa é a primeira impressão que tive de Russel. Alguém forte, extremamente inteligente e corajoso. Pra mim, um herdeiro direto da tradição revolucionária haitiana”, comenta Pedro, que, naquele dia, foi ao encontro de Russel e pediu seu contato. 

O estudante de doutorado salienta que a visão sobre o amigo não é romântica ou idealizadora. “Marcamos muitas e inúmeras conversas depois. E então minha impressão foi se confirmando. Foi a partir desses encontros que fomos nos tornando mais do que o par entrevistador-entrevistado e nos tornamos amigos”. O reconhecimento ao personagem que influenciou profundamente sua tese sobre haitianos no Brasil e em Curitiba e a admiração que manifesta são a tônica dos comentários de Pedro sobre Russel.

Inicialmente, a pesquisa visava a projeções estatísticas que envolviam a população haitiana em Curitiba e região metropolitana. Após o encontro com Russel, uma mudança de rota aconteceu. “Em nossas conversas, fui compreendendo o mundo que o sustentava física e emocionalmente. Falo sobre a história do Haiti que eu ignorava – que hoje é a da América e de sua conquista, de sua exploração. Minha vontade foi de contar essa história, mas de abordá-la a partir dos haitianos de carne e osso que vemos em Curitiba”, especifica.

Com Russel, aprendeu a falar francês para que pudessem se comunicar na língua em que o haitiano se expressa com desenvoltura. Eles trocaram leituras, sugestões de filmes e se encontraram em festivais de teatro, uma paixão em comum. Em 2019, Russel integrou o elenco da peça “Quiçá Realidade”, da Pé no Palco Atividades Artísticas. Literatura e política são temas que interessam à dupla.

Atuação na peça “Quiçá Realidade”, inspirada no livro “Morada do Ser”, de Marina Colasanti. Russel começou a fazer teatro quando estava na faculdade de Economia, engajado no movimento político contra o governo de Jean-Bertrand Aristide, que presidiu o Haiti por três períodos. Foto: Iris Silva

Os amigos costumavam se encontrar aos sábados, depois das aulas de português de Russel. Em 2019 Pedro viajou para a França para estudar, e retornou em 2020. “Eu o acompanho na internet como um grande fã. Agora ele saiu da plateia e atua nos palcos. Quando me sentia vencido lá no estrangeiro, lembrava desse amigo e me inspirava, infundia-me um quantum mais de força. A meu ver, é dessas espécies de líderes natos. É sempre um prazer falar de Russel e de seus heróicos conterrâneos”, enfatiza o brasileiro. O economista agradece o apoio que recebeu nos últimos anos e durante a pandemia. “Recentemente, ele estava aqui na minha casa trazendo frutas para mim, distribuindo para alguns haitianos”, pontua.

O traquejo para liderança e a eloquência de Russel impressionam Pedro, que destaca a naturalidade com que o haitiano se faz presente no centro de discussões em grandes círculos na Universidade e em pequenos grupos de amigos. “Ele é o grande herói da minha tese. Se pudesse transformá-la num romance, eu colocaria Russel como o herói épico-trágico. Aquele que faz frente a grandes e difíceis situações. Essa é uma característica da maioria dos haitianos com que falei nesses anos. Russel, a meu ver, a tem em maior medida”, afirma o sociólogo.

Captura de tela de chamada de vídeo feita em 29 de fevereiro de 2020, quando Pedro ainda estava na França. Foto: Arquivo pessoal

Chegada ao sul do mundo

Os familiares, que têm apreço pelo povo brasileiro, apoiaram a decisão. Estimulado por um projeto criado pelos governos do Brasil e do Haiti após o terremoto, ele decidiu morar na América do Sul e abraçar a oportunidade de trabalho. O ingresso ocorreu de forma clandestina. “Entrei pelo Equador. Equador – Peru e Peru – Acre. Na minha época, para você ter um visto – pela lei, gratuito – você precisava pagar mais de dois mil dólares americanos para comprar. Havia corrupção”, conta Russel.

“Talvez daqui há quatro, cinco anos – porque não estou escrevendo muito ainda em língua portuguesa – os brasileiros vão ler o meu trabalho. A coisa que me chama mais atenção é a exploração do homem pelo homem. Eu cheguei em Puerto Maldonado, no Peru, e vi um homem pegar um monte de haitianos, africanos, e colocar num espaço grande dele. Só para ligar para as famílias mandarem dinheiro, só para fazer negócio”, revela.

Com uma palavra, resume a experiência da viagem: “horrível”. O relato de quem foi enganado impressiona, e inicia com a chegada à rodoviária da cidade peruana. Lá, Russel pegou um táxi. “É uma rede. Eles combinam de o pessoal do táxi nos levar até o galpão. Quando você chega, vê um monte de ‘irmãos’ e pensa: como assim? eu quero entrar no Brasil hoje”. E prossegue a narração. “O peruano tirou o calibre 38. Falei ‘você pode me matar. Eu não vou dormir mais no Peru’’”. Acompanhado de um amigo, questionou o paradeiro de sua mala. “Quando o homem viu que estávamos bem bravos, deu a mala. A gente não estava com medo dele”.

De acordo com o jovem, cada imigrante pagou cerca de 200 dólares pela viagem. Pelas suas contas, havia em torno de 140 pessoas no veículo, que fez a viagem em aproximadamente quatro horas. “Você imagine uma van, um pequeno ônibus. Eles empurram gente sobre gente. As malas amarradas, mais de 160 km por hora. Em cima de mim, tinha mais três pessoas que sentaram. Lotado. Não é brincadeira”.

Max e Aldette, pais de Russel, no quintal da casa da família, no Haiti. Foto: Arquivo pessoal

Por volta das 2h da manhã, o grupo chegou à fronteira do Acre. “Pela velocidade, achei que a polícia estava atrás de nós. O motorista deu uma volta, jogou as malas no chão. Tinha gente chorando, porque apertava muito. Todo mundo saiu para procurar as malas”, revive. Com as bagagens em mãos, o haitiano e o amigo se aproximaram da fronteira. “Vi o Exército Brasileiro que falou ‘bem-vindos, gente, vocês estão na sua casa’. Eu pensei ‘nossa, que paradoxo’. No Peru, diziam para a gente que seria muito difícil”, diz, ainda tentando compreender. 

Quando relembra o episódio, o comportamento das polícias do país andino e a exploração geram revolta. Hoje, o rapaz questiona a emigração dos compatriotas. “A vida horrível, uma situação apertada para sobreviver fora… não é melhor ficar na tua terra, lutar para mudar a situação? Isso que vi. Eu conheci uma família do Haiti que se mudou e vendeu dois terrenos, gastou 50 mil dólares para mandar três filhos para os EUA clandestinamente. Chegando no México, foram deportados”. 

A escolha pelo Brasil teve ligação com o sentimento que nutria pela Seleção Canarinho. “No Haiti, a seleção brasileira é uma coisa muito emocionante. Quando ganhou a Copa, nossa… você não imagina. Mas criou um paradoxo na minha cabeça. Porque o amor que a gente tinha lá, a ideologia sobre o Brasil, quando cheguei aqui, mudou totalmente”, afirma.

O preconceito vivido explica o sentimento de decepção. “Já falei muitas vezes com brasileiros: na minha terra, a gente nunca prestou atenção na palavra racismo, porque não existia essas coisas. Por isso falo, é um choque pra mim”. A história do Brasil, com destaque para o processo de abolição da escravatura, foi tema de estudo para o aluno da UFPR, que sentiu necessidade de encontrar respostas e compreender a realidade do país em que vive atualmente. 

Apesar das desilusões, aponta dois “S’s” positivos do Brasil: samba e saúde. “Lá no Haiti, a situação da saúde é bem mais crítica. O governo lá não está pegando responsabilidade”, desaprova o rapaz.

Trabalhos no Brasil

Quando chegou ao Brasil, em julho de 2013, Russel trabalhou como servente de obras com um amigo com quem estudou no Haiti. “Assinei carteira e o chefe deu duas vassouras para nós. Tinha também trabalho com uma tinta que as pessoas não queriam fazer. Um produto químico bem forte. Essas coisas ninguém vai fazer, só os haitianos”, observa. Os jovens eram responsáveis pela limpeza de cerca de dez andares de um prédio em construção. Após quatro meses na atividade, pediu as contas.

O estudante trabalhou como soldador em uma companhia metalúrgica. “Foi essa empresa que acabou de mudar a minha cabeça. O tratamento foi muito, muito horrível. O pior momento da minha vida. Hoje, podem oferecer 20 mil reais para eu trabalhar de novo lá. Não vou mais”.

Conforme relata, o setor de solda leve contava com cerca de 20 profissionais. “Fui o único que, durante quatro anos e meio, nunca pôde parar, sempre ficavam de olho”. Um dia, resolveu reclamar. “Em 2014, o Brasil estava em crise e o movimento estava bem fraco. Se tinha três caixas de peças de caminhão para soldar, o líder colocava para mim. Quando falei ‘não sou só eu, dá uma caixa pra cada um’, ele olhou pra mim e falou: ‘aqui sou eu que mando, você faz o que eu quero’. Não foi bem”, relembra.

O preconceito vivido permeia os relatos das experiências de trabalho no Brasil. “No meu setor, tinha um negro brasileiro. Ele trabalhava comigo, como auxiliar também. É uma estratégia, sabe? Porque ninguém queria trabalhar comigo. Por exemplo: os outros faziam 25 unidades de peças, o líder pedia para eu fazer 50. As minhas metas sempre foram maiores”.

O futuro administrador pondera sobre o elevado número de desempregados no Brasil e expõe seu raciocínio sobre o uso da mão de obra haitiana. “O migrante chega numa empresa. Ela vai contratar você em um lugar, com tipos de trabalho que os brasileiros não querem fazer – porque já tem um monte de brasileiros sem trabalho”. Descontente, questionava os comportamentos dos superiores. 

A experiência no Brasil como soldador despertou a lembrança de seus domingos no Haiti. A reflexão foi tema de um trabalho que produziu na UFPR. “No Haiti, domingo nunca foi estressante. Nem pensava no trabalho. No Brasil, sempre fiquei estressado no domingo durante quatro anos, já sabendo que segunda-feira o inferno iria começar”.

Uma alergia causada pela solda traz más lembranças. “O dermatologista deu uma carta para me afastar da área de solda. Fiquei brigando para sair. Continuei trabalhando normalmente, ninguém falava nada pra mim. Meu rosto, o peito e a cabeça tinham um monte de bolinhas. Quando dormia e levantava de manhã, tinha sangue por tudo”. 

Uma segunda carta médica foi apresentada e por cerca de um ano, trabalhou na portaria da empresa. No primeiro semestre de 2018, pediu demissão. O relatório do exame feito à época alerta para os cuidados que deve tomar. As consequências da exposição ao material ainda são sentidas, mais de um ano e meio depois do último contato. “Tem coisas que não posso mexer mais: metal, fumaça de solda, um monte de produtos. Até hoje as minhas costas têm um monte de marcas”, lamenta.

A diferença percebida na forma de tratamento o mobilizou a procurar seus direitos e entrar com processo judicial. Apesar das adversidades, encontra também aprendizados no que viveu. “Essa empresa foi uma ‘sorte’ que eu levei. A consciência que eu peguei lá é o que me interessa”. 

O jovem que não assiste mais aos jogos de futebol da Seleção Verde e Amarela quer contar isso ao pai pessoalmente. A decisão foi tomada durante a Copa do Mundo de 2014. “O dono da empresa mandou fazer reunião pra assistirmos só ao jogo. Teríamos que voltar para a fábrica e devolver as horas. Pensei: se o patrão não quer perder duas horas pro país dele, eu que sou do Haiti não vou fazer isso. Estava lá para trabalhar”.

Ele acredita que honra o legado da família por lutar contra a alienação em seu país, por se manter original e gostar da identidade e da história do seu povo. “Hoje vejo a importância de tudo isso. Quando estava no Haiti, eu não sabia. A inteligência emocional que tenho quando uma pessoa está me tratando mal, para eu não entrar no ‘mesmo jeito’ com ela, é meu pai que sobe na minha cabeça”. O jovem repete as palavras do progenitor. “Ele sempre fala: não responda por palavras, isso não vai resolver. Não é a pessoa que vai reagir que é mais forte. A pessoa que agir é a mais forte. Isso me ajuda muito”. 

Em janeiro de 2020, iniciou um estágio em uma agência de mídia programática. O aluno se intitula um homem “3D” – com três dimensões. As diferentes qualificações que adquiriu nos últimos anos explicam a brincadeira. “Saí do Haiti com uma formação em Economia. Cheguei no Brasil, não sabia nada de solda. Fiz o curso para sair da construção civil.” No currículo, dois cursos técnicos: Eletrônica e Eletromecânica. As aulas foram ministradas no Centro Estadual de Educação Profissional (Ceep) de Curitiba, no Boqueirão. Eram quatro ônibus para ir ao trabalho e quatro para voltar. Desde que chegou ao Paraná, mora em Pinhais. “Por isso falei que sou um homem ‘3D’: um lado profissionalizante, um técnico e um com curso superior”, sorri.

Ele relata não sentir desconforto com a rotina de distanciamento social ditada pelo novo coronavírus, e faz referência à realidade que vive na América do Sul. “De ponto visto de isolamento, não tem mudança porque em todos os lugares durante o tempo que eu estou morando no Brasil eu costumo ficar sozinho. Nas salas de aula, pátio e no trabalho é semelhante também”. 

Sobrevivente do terremoto

Antes de iniciar o relato, Russel faz uma pausa. Em tom de gravidade, começa sua fala sobre o terremoto que assolou o Haiti em 2010. “Essa é a pergunta mais difícil que você me fez. Eu estava na capital. Por isso também acho que tenho uma missão na terra”. À época com 24 anos, cursava Economia na Université d’État d’Haïti (UEH), em Porto Príncipe. Minutos antes da catástrofe, ouvia o professor da disciplina Política Econômica.

“Um amigo me chamou – ele me chamava de ‘antimessi’, porque eu não gostava do Messi, jogador argentino. Aí saí da sala só para conversar sobre futebol”. No pátio da faculdade onde os alunos se reuniam para jogar basquete, o pesadelo começou. “Ouvi um barulho e vi a terra tremer. O terreno do pátio ficou inclinado e voltou. Quando olhei a capital, só poeira. Saí na rua e vi pessoas que paravam o carro e ficavam de joelhos, faziam orações. Foram 300 mil pessoas [mortas] na hora. Quando voltei na sala, professor, estudante, ninguém saiu. Por isso, sempre penso assim: ninguém vai me matar na minha vida, porque já tive a oportunidade pra morrer dentro dessa sala de aula”, afirma o sobrevivente. 

O amigo Peter sobreviveu. “Cada vez que manda mensagem pra mim, ele diz, ‘eu sou papai da vida de você’, porque me chamou um pouco antes do terremoto”. Diante das fatalidades que presenciou, acredita que, se há um propósito em sua vida, tem de honrá-lo. Ao professar a fé, explica que, a cada dia, sente-se mais espiritual e menos religioso. Russel conta que encontrou um amigo soterrado por toneladas de cimento onde havia a escada na faculdade. E externa a dor que sentiu por não poder ajudá-lo. Correu para casa e lá, viu duas irmãs nos escombros de uma parede destruída. “Consegui resgatá-las e logo meus outros dois irmãos que estavam na faculdade chegaram. Nos abraçamos e choramos muito”, relembra.

O haitiano atuou como voluntário em ações sociais após o sismo. Durante quatro anos, coordenou projetos em duas ONGs internacionais. Aliviar as dores daqueles que viveram o terremoto foi o objetivo do trabalho que desempenhou junto à equipe da International Medical Corps (IMC) e a Handicap International (HI).

As atividades no computador e a dedicação às leituras fazem parte da rotina do estudante. Registro feito antes da pandemia no Campus Jardim Botânico. Foto: Marcos Solivan/Sucom-UFPR

“Tínhamos um projeto de nutrição. Depois do terremoto, muitas crianças não conseguem mamar. Não tem leite, não tem comida. Muitos casos de desnutrição. Havia também um projeto para pessoas que não tinham casa porque o terremoto destruiu. A gente construiu. Também um relacionado à psicologia. A gente fazia encaminhamento, visita domiciliar”, exemplifica o estudante.

Durante meses, viveu com a família e pessoas da comunidade em barracas a céu aberto. Os mais jovens se revezam durante à noite para manter a segurança de todos. “Demorou mais de oito meses para eu voltar a entrar em uma casa. Muitos traumas ficaram. Até hoje não consigo dormir em prédios e quando estou em um lugar que passa carros ou ônibus que geram aqueles pequenos tremores, o meu corpo fica em estado de alerta”.

Vida no Haiti

Quando saiu do Haiti, havia corrupção, problemas com inflação e guerra entre povos, contextualiza Russel. “Agora está pior. Dinheiro que a gente precisava para fazer comida para uma família de cinco pessoas… agora está mais difícil. Minha mãe conta que está horrível. Mandei 100 doláres pra ela e não durou uma semana”. O terremoto de magnitude 7 na Escala Richter teve o epicentro na península de Tiburon, a cerca de 25km de Porto Príncipe.

O rapaz recorda a realidade de sete anos atrás. “Se tinha R$ 2,15, dava um dólar no Haiti. Agora é preciso mais de R$ 5,00 para ter um dólar lá”, contabiliza. Ele fala sobre geopolítica e faz uma leitura do cenário atual. “Até hoje, os países imperialistas estão fazendo tudo que depende deles para segurar o Haiti em uma situação de pobreza, para mostrar que qualquer país que tomar uma decisão pra sair da escravidão – como o Haiti tomou no século XIX -, que não é uma boa ideia. O Haiti foi o país que realizou a revolução mais radical da história da humanidade”, avalia.

O Haiti não vai mudar se não eleger um presidente que tem autonomia, sentencia o jovem em meio a críticas ao governo de Jovenel Moïse, eleito em 2016. As reflexões do futuro administrador ganham forma em escritos, que reforçam a percepção sobre a história do seu povo e da sua geração. “A gente chama pessoa de 1984 pra cima de ‘pós-86’ lá no Haiti, que significa depois da Ditadura. Muita gente sumiu, porque tinha perseguição política. E a gente viu, na década de 90, essas pessoas que tinham saído forçadas do país voltarem com um poder econômico muito forte”. A contextualização introduz a crítica ao padrão que identificou em sua terra. “A gente cria na cabeça que a única forma que pode resolver o nosso problema econômico é viajar. Por isso, hoje, viajar, lá no Haiti, é um projeto que todas as famílias têm. Tem pai lá que faz tudo, tudo que pode fazer para tirar o filho do país. É uma alienação”, diz, inconformado.

O espírito solidário e o desejo de ajudar pessoas que buscam uma vida melhor fora do país de origem motivaram o aluno a presidir a Solidariedade Imigrante, ONG criada em julho de 2018 no Brasil. “A gente tem um trabalho de autodeterminação. Estamos trabalhando para criar um centro para as crianças, haitianos que nasceram aqui, para saberem a história deles. Porque sem história…”. As reticências de Russel abrem espaço para sua percepção sobre o preconceito. “Há uma marginalização muito grande do negro. Eu não quero isso para os filhos de haitianos que nascerem aqui. Pra mim, não tem pessoa superior, pessoa branca, pessoa negra, pra mim não existe isso”, pondera.

Planos para o futuro

O estudante da UFPR ainda não decidiu se ficará no país para cursar mestrado, porque seu maior objetivo de vida – engajar-se na política e ajudar seu povo – imprime urgência. “Eu quero mudar essa ideologia de que a única coisa que pode mudar a vida de um haitiano é viajar. Esse paradigma. Quero quebrar isso”. A graduação que cursa não tem relação direta com alguns dos seus sonhos, mas a titulação representa uma conquista para ele. “Não tem nada a ver com política. Muitas pessoas dizem pra eu mudar a área, mas não é a Administração que vai fazer algo por mim, sou eu que vou fazer”, decreta. 

Russel carrega nos olhos o brilho e a convicção dos apaixonados por uma causa. Em suas colocações, entusiasmo, energia, boa vontade, fé. Quando o assunto são os planos para o futuro, ele tem clareza do que quer. E seu coração já sabe o caminho. “O Russel que estava lá no Haiti não é o mesmo. É um Russel que tem mais engajamento, mais compromisso; que quer voltar na terra dele para pagar qualquer tipo de preço para se engajar na política. Alguém pode me matar. Não importa. Depois do meu estudo eu vou fazer isso, para parar essa migração de massa. Os haitianos que acabaram de sair acham que a única solução que tem é um outro país. Eu vou parar isso”, garante. A maioria dos colegas haitianos não pretende voltar ao país de origem, e isso o entristece. 

“No Brasil, eu nunca conheci um haitiano que conseguiu me influenciar para viajar clandestinamente de novo para ir para os Estados Unidos. Conheço alguns que estudavam em Foz do Iguaçu e largaram tudo. Estavam no caminho certo para resolver a vida e foram para os EUA. Fazer o que lá?”, questiona. A violência que observa no rastro da mundialização o assusta. 

Seu desejo é ser um homem de Estado. “Homem de Estado que não é homem de política. Quero ser uma pessoa que marca a história. Esse é meu sonho, meu plano. Não sei qual é o preço que vou pagar para isso, mas vou lutar para participar. Para ser um exemplo, como Thomas Sankara foi”. Thomas Isidore Noël Sankara, militar e líder político do país africano Burquina Fasso, assassinado em 1987, é um de seus modelos.

Espirituoso, brinca: se houvesse uma câmera em casa, durante 24 horas ela registraria suas atividades no computador e a dedicação às leituras. Mas nem sempre foi assim. “Houve um momento em que estava meio largado”. Durante o período em que atuou como soldador, começou a refletir sobre sua caminhada. “Pensei: ninguém vai mudar nada pra mim. Eu que tenho que mudar minha vida”. E, assim, abraçou os estudos. 

Família e infância

É o quinto de 11 filhos, sete mulheres e quatro homens. Quatro vieram antes dele e depois do seu nascimento, seis. A irmã mais nova está no ensino médio. A mais velha completou 40 anos. Um dos rapazes é escritor, conta, orgulhoso. Na família, há formados em Agronomia, Administração e Serviço Social. Carl Henry, bacharel em Direito, também foi selecionado pelo edital de reingresso e estuda Pedagogia na UFPR. O irmão Carlile cursa Psicologia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

As sete irmãs de Russel, que moram no Haiti. Foto: Arquivo pessoal

Desde cedo, todos receberam estímulos para que estudassem. “Às vezes, a gente estava de férias. Minha mãe não queria que a gente saísse pra jogar bola, tinha que ficar lá para ler. Sempre foi assim”. Os pais são aposentados.

A simpatia pelo reggae e pelas músicas de Bob Marley tem o sabor da sua história. “Eu gosto porque tem sua raiz no movimento negro”. A mãe, Aldette, o chama de “bri”, que significa, em crioulo, pessoa que gosta de fazer barulho. “Quando pequenininho, fazia um monte de coisas em casa. Crioulo é uma língua que nasceu no sistema escravagista lá no Haiti. Os escravos criaram uma língua para o chefe não entender quando combinavam coisas. Essa língua é a mais popular no país”, explica.

Sobre a infância, recorda que havia pessoas em situação mais difícil do que a vivida por sua família. E fala sobre um hábito cultivado desde cedo: estudar após a refeição com os irmãos. “Lembro de uma vez que meu pai não tinha comida para nos dar, e todo mundo entendeu que não teria porque não tinha fogo, não tinha nada. Tinha que estudar e depois levar o livro para minha mãe ver em qual capítulo estava, e tinha que recitar tudo de cabeça”. Com os irmãos, estudava em casa, e aguardava o pai chegar à noite do trabalho. “Quando voltava, vinha com o pão e a gente pegava açúcar, água e fazia uma mistura. E comia um pedaço de pão cada um. Isso eu lembro até hoje. Isso significa que a minha família é uma família pobre. Fomos uma família muito feliz”.

As idas à praia de Bon Repos, que significa “Bom Descanso”, povoam suas lembranças, assim como a habitual programação da infância nas tardes no Haiti. “A minha casa, ela sobe e a gente vê o mar. A gente sempre estava na praia. Tínhamos um grupo de amigos. Levávamos livros de literatura. Lá tem um negócio, ‘buafouye’, um tipo de barco que a gente faz com madeira, a gente entrava nele, dormia, lia, discutia sobre as leituras”.

A educação e o amor pelos livros são valores transmitidos pelo pai, Max, exemplo de fé para ele. O estudante explica que sua religião não tem nome. “Meu pai me fala isso. A Bíblia não fala em nenhum lugar para dar nome à igreja de Jesus. Perguntei uma vez e ele me falou, ‘Russel, você quer estudar a Bíblia, vamos?’”, diz, enquanto esboça um sorriso.

O haitiano aprecia etimologia. Convidado a compartilhar uma palavra interessante, escolhe duas: “política” e “supremacia”. Ainda sobre vocábulos e seus significados, fala de democracia e expressa opinião sobre o cenário brasileiro. “No mundo, a democracia criou um compromisso a cada quatro anos para trazer todo mundo para votar. Pra mim é uma vergonha. Quando você fala demos-kratos, poder-povo… eu cheguei no Brasil e vi que o povo, aqui, não tem poder na saúde, não tem poder de educação. Veja quantas poucas pessoas conseguem entrar nas faculdades federais do Brasil”, finaliza, no tom reflexivo que é característico.

Contar histórias como a de Russel é uma das ações da campanha “Menos Fronteiras. Mais Descobertas”, que visa à conscientização da comunidade acadêmica para o acolhimento dos alunos estrangeiros. Acompanhe no Portal da UFPR e na página da Universidade no Facebook. Conheça também a história de Maiker, estudante migrante que cursa Odontologia na Federal.