Pesquisadoras da UFPR e do Queen Mary University of London estão trabalhando na construção de uma plataforma virtual bilíngue com foco em questões de gênero e educação. Denominada Landless Voices II, a plataforma oferece, entre outros conteúdos, recursos didáticos para a inclusão de questões de gênero nos currículos das escolas secundárias do campo, em especial dos assentamentos da reforma agrária.
O banco de dados (http://landless-voices2.org/) é a etapa final de um projeto pioneiro de pesquisa, uma parceria entre as duas universidades, que, ao longo de dois anos, socializaram conhecimento com educadores e educandos de escolas de assentamentos e acampamentos de reforma agrária no Paraná, a partir de dois eixos temáticos: a diversidade de gênero e a divisão sexual do trabalho.
O Projeto Internacional Gender and Education in Rural Areas in Brazil (Gênero e educação em áreas rurais no Brasil) foi patrocinado pelo Newton Fund e a British Academy, no período de setembro de 2015 a setembro de 2017, através da chamada Newton Advanced Fellowships (https://www.britac.ac.uk/newton-fund-2015-awards-list). Foi liderado pelas pesquisadoras Else R. P. Vieira (professora catedrática de Estudos Brasileiros e Latino-Americanos Comparados do Queen Mary Universityof London) e Sônia Fátima Schwendler (professora associada II do Setor de Educação da UFPR e pesquisadora associada do Queen Mary University of London).
Os recursos didáticos foram produzidos por cerca de 150 estudantes do ensino médio das duas escolas piloto onde o projeto foi desenvolvido: o Colégio Estadual do Campo Contestado, no município da Lapa, e o Colégio Iraci Salete Strosok, localizado no Assentamento Marcos Freire, em Rio Bonito do Iguaçu. O banco de dados abriga também depoimentos colhidos nas escolas do campo.
A professora Sônia conta que o trabalho foi dividido em dois momentos. No primeiro ano, as pesquisadoras e suas equipes trabalharam com estudantes de ensino médio das duas escolas, em quatro workshops voltados para as temáticas da diversidade de gênero e a divisão sexual do trabalho. “Usamos clipes, documentários, novelas como pontos de partida para o debate, que resultou na produção de um material muito rico: músicas, poesias, fanzines, desenhos – tudo transposto para o site”, relata.
Segundo ela, a intenção foi produzir material didático na perspectiva freiriana, a partir do olhar dos/dasjovens, sobre temas que ainda são cercados de tabu. “Quisemos ver também os conflitos geracionais em torno das questões da diversidade de gênero e da divisão sexual do trabalho”, conta.
Formação de professores
Na segunda etapa, o trabalho voltou-se para a formaçãode professores/as e pedagogos/as de escolas localizadas em assentamentose acampamentos para a abordagem desses temas. Em dois seminários, as pesquisadoras compartilharam o material didático e o conhecimento produzidos na primeira fase do projeto e proporcionaram formação teórica a 60 profissionais da educação, os quais também contribuíram com a produção de recursos educacionais para o banco de dados.
Para Sônia Schwendler, mesmo com a queda de barreiras entre campo e cidade facilitada pela tecnologia, ainda há diferenças entre as duas esferas quando se trata de gênero e diversidade. “A violência contra a mulher no campo, por exemplo, está muito ligada à dependência econômica, como também ocorre nas áreas urbanas, mas com um agravante: nas áreas rurais não existe a rede de proteção que facilita a denúncia”, observa.
Filha do campesinato – nasceu numa família de trabalhadores rurais no Rio Grande do Sul –, a professora Sônia, que também já lecionou em escola do campo, dedica-se a estudar questões ligadas ao campo e ao campesinato, especialmente as de gênero e educação, desde a década de 1990, antes de ingressar na UFPR (1997). Segundo ela, ainda há poucos estudos sobre gênero na educação do campo, e particularmente sobre a diversidade de gênero no campo, mas é possível afirmar que houve avanços nas últimas décadas, principalmente a partir da inclusão da temática no movimento social do campo mais expressivo da América Latina, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “Em 1996, foi criado o primeiro Coletivo Nacional de Gênero no MST, fruto da luta das mulheres pela participação política. Hoje, há paridade de gênero em todas as instâncias diretivasdo Movimento. Em 2015, a partir do protagonismo da juventude camponesa, no MST foi criado o Coletivo LGBT Sem Terra”, informa.
Ainda assim, segundo ela, ainda se fala pouco em diversidade e os preconceitos persistem, especialmente entre os mais velhos.“A pesquisa que fiz para o meu doutorado na Universidade de Londres, sobre o processo de emancipação política das mulheres campesinas no Brasil e no Chile, mostrou o impacto significativo do aspecto geracional na conquista da autonomia”, conta.
A parceria entre a UFPR e o Queen Mary University of London – iniciada a partir do desenvolvimento do projeto e que se consolida através de um acordo de cooperação entre as duas instituiçõe, assinado em setembro pelo reitor Reitor Ricardo Marcelo) – trouxe diversos impactos pedagógicos e culturais, conforme indicam os depoimentos dos próprios educandos, educadores e diretores das escolas .
”O estudo sistemático das temáticas da diversidade de gênero e da divisão sexual do trabalho, assim como o debate com a juventude do campo sobre marcantes mudanças culturais e sua projeção pela mídia revelaram-se cruciais para a desconstrução de preconceitos e práticas homofóbicas presentes no contexto rural”, destaca a professora Sonia.
Ela também enfatiza a importância do trabalho formativo com os profissionais da educação para que as escolas assumam seu papel no processo de socialização e construção do conhecimento, inclusive sobre temáticas polêmicas, principalmente no contexto atual. A professora lembra que tramitam em vários estados e cidades projetos de lei propondo “escolas sem partido”, que “buscam censurar a liberdade de ensino, de pesquisa e divulgação do pensamento e do saber, o que fere os princípios da Constituição Federal, artigo 206”.